Reprodução Interdita
Critique des médias

 

Actualité de l'auteur

Interviews et portraits

Dialogue avec l'auteur

Facebook

 

 

Publico
A Prostituição dos Clones
Clara BARATA

Um cientista galardoado com o Nobel aparece morto num quarto de hotel, um incêndio numa penitenciária resulta na morte de alguns dos detidos. A um juiz íntegro calha investigar estes casos, que inesperadamente estão relacionados. E, mais estranho ainda, remetem para um caso já com alguns anos, em que várias pessoas foram condenadas por montar uma operação de lenocínio com clones - prostituição de clones de pessoas famosas, como estrelas de cinema e modelos. É este o cenário da história contada pelo francês Jean-Michel Truong, em "Reprodução Interdita", um romance que se poderia dizer de ficção científica mas na verdade é mais uma obra moral.

Este livro foi lançado em 1989, e só passados 15 anos chega a Portugal. É escrito por um especialista em inteligência artificial, que montou a primeira empresa do ramo em França, mas que se formou em Filosofia. Não é produto das reflexões e medos da clonagem que nos anos mais recentes têm surgido nos meios de comunicação, pois Truong escreveu este livro oito anos antes de ter sido revelada ao mundo a ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado a partir do património genético de uma célula de animal adulto. E, no entanto, as questões éticas que coloca continuam a ser discutidas hoje.

É um mundo parecido com o actual, apenas umas décadas mais adiante: estamos em 2037 e existem vários blocos económicos que se enfrentam não só pelo comércio como pelas armas.

Na América, e noutros países desenvolvidos, a clonagem não se faz: foi banida. Nestas nações usam-se as máquinas e a inteligência artificial. Mas os cientistas que se interessavam pela clonagem migraram em massa para França, onde a clonagem, longe de ser proibida, foi incentivada pelo Estado.

Assim, a França especializou-se na indústria dos clones - criados retirando uma célula a um embrião, para depois os fazer crescer em incubadoras capazes de sustê-los durante os nove meses de desenvolvimento. Esses clones são submetidos a algumas pequenas alterações genéticas, de forma a terem malformações na glote e no cérebro que os impedem de falar e desenvolver uma linguagem - o que, espera-se, faz deles animais sem consciência, criados em grandes quintas, como se fossem gado.

Muitos destes clones são cópias genéticas de pessoas ricas, que os usam como uma espécie de seguro de vida: quando precisarem de um transplante, ou até de uma perna ou braço novos, retiram-no ao seu clone. Se precisarem de um órgão fundamental, sem o qual o clone não pode sobreviver, este é abatido e todos os seus órgãos e tecidos são congelados. Desta forma, as componentes anatómicas humanas (vulgo peças sobressalentes) estão sempre prontas a usar quando o seu dono delas necessitar.

Outros clones são usados como cobaias em experiências científicas - uma opção vista com bons olhos pelos amigos dos animais, como uma velha actriz reformada cujas iniciais são B.B., como a bem real Brigitte Bardot - ou então como as bestas de carga que estão na base de toda a actividade económica.

Tudo isto acontece com o beneplácito do Vaticano - que no Concílio de Francoforte, em 2000, define o que considera humano e deixa de fora os clones, porque são criaturas feitas pelo homem e não por Deus.

Hoje, tudo isto parece ao mesmo tempo actual e deslocado.

Por um lado, fala-se da clonagem e dos limites necessários para que os seres humanos não se transformem em coisas, para que os embriões humanos sirvam de salvação para os já nascidos ou de formas de salvar essas vidas nascentes, mesmo quando não são mais que uma série de células trabalhando em conjunto. A posição oficial dos Estados Unidos é mesmo favorável à interdição na clonagem, e a Europa oscila entre o desejo de ganhar a vanguarda e as hesitações no plano ético.

Mas, por outro lado, os desenvolvimentos da ciência nesta década e meia não nos conduziram assim tanto por essa via da coisificação. Os cientistas aprenderam a clonar mamíferos adultos, sim, e estão à beira de aprender a fazê-lo com seres humanos. Mas nem de perto nem de longe existem úteros artificiais, meios de permitir que um embrião se desenvolva sem ser na barriga de uma mãe.

E embora os cientistas falem em coisas que parecem assustadoras - como criar embriões com o património genético idêntico ao de alguém, e destruí-los passado uns dias, para colher células estaminais -, não se fala na criação de quintas de clones. Nem em considerar que os clones não seriam humanos.

Fala-se em aprender a controlar o desenvolvimento dessas células estaminais, que dão origem a todo o tipo de células e tecidos do corpo, para criar formas de tratar doenças hoje incuráveis. Talvez enxertos de células cerebrais para os doentes de Alzheimer ou Parkinson - ou até mesmo a criação de órgãos inteiros em laboratório, como um coração ou um fígado novos, cujas células teriam o património genético do doente e, desta forma, não apresentariam problemas de rejeição, em caso de transplante.

Isto é menos assustador do que o cenário negro traçado por Truong? Pode-se dizer que sim, mas também se pode dizer que estamos a falar da mesma coisa, embora com roupagens mais alegres. O próprio Truong o diz, numa entrevista disponível a partir da consulta do seu "site", em http://www.jean-michel-truong.com : "Está em curso um debate sobre a possibilidade de criar órgãos 'in vitro', como pele ou corações. Mas penso que nunca chegaremos lá, porque o desenvolvimento dos órgãos é controlado por sinais do seu ambiente químico, que encaminham o processo, mas também pelo ambiente volumétrico: um coração desenvolve-se daquela forma porque está situado entre os dois pulmões, e todos dentro da caixa torácica."

Não é o argumento de um biólogo, é o de um especialista em inteligência artificial e filosofia, mas é taxativo: "Na minha opinião, nunca será possível criar órgãos em laboratório." A única maneira de fazê-lo, sublinha Truong, é dentro de corpos em tudo semelhantes aos humanos, embora possam ser manipulados para não ter cérebro.

As ideias de Truong - que ele desenvolveu noutros romances e ensaios - inserem-se numa das grandes correntes de pensamento: em traços largos, a dos que têm medo das consequências das inovações que a ciência e a medicina trazem. Nos Estados Unidos, esta corrente está, neste momento, fortemente ligada ao poder: Leon Kass, o presidente do comité de bioética que aconselha o Presidente George W. Bush, é bem conhecido por este tipo de posições (ver http://www.bioethics.gov ), e o igualmente bem conhecido Francis Fukuyama, que também faz parte deste comité, defendeu estas preocupações em 2002, no livro "O Nosso Futuro Pós-Humano" (Quetzal).

Mas também há quem veja com entusiasmo as possibilidades para a humanidade da evolução das técnicas de manipulação biológica. Gregory Stock, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, é um bom exemplo, sobretudo através do livro "Redesigning Humans" (Profile Books), que foi editado em 2002 e é normalmente discutido em oposição com o de Fukuyama.

Entre a visão negra do futuro humano e as projecções mais cor-de-rosa deverá situar-se a realidade. Mas, na falta de respostas certas, o melhor mesmo é ouvir as opiniões de ambos os lados. Se for possível fazê-lo no conforto das malhas de um romance como este, tanto melhor.

© Publico,
Sábado, 20 de Março de 2004
retour à la page Critiques Médias