Um
cientista galardoado com o Nobel aparece morto num quarto
de hotel, um incêndio numa penitenciária
resulta na morte de alguns dos detidos. A um juiz íntegro
calha investigar estes casos, que inesperadamente estão
relacionados. E, mais estranho ainda, remetem para um
caso já com alguns anos, em que várias pessoas
foram condenadas por montar uma operação
de lenocínio com clones - prostituição
de clones de pessoas famosas, como estrelas de cinema
e modelos. É este o cenário da história
contada pelo francês Jean-Michel Truong, em "Reprodução
Interdita", um romance que se poderia dizer de ficção
científica mas na verdade é mais uma obra
moral.
Este livro foi lançado em 1989, e só passados
15 anos chega a Portugal. É escrito por um especialista
em inteligência artificial, que montou a primeira
empresa do ramo em França, mas que se formou em
Filosofia. Não é produto das reflexões
e medos da clonagem que nos anos mais recentes têm
surgido nos meios de comunicação, pois Truong
escreveu este livro oito anos antes de ter sido revelada
ao mundo a ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado
a partir do património genético de uma célula
de animal adulto. E, no entanto, as questões éticas
que coloca continuam a ser discutidas hoje.
É um mundo parecido com o actual, apenas umas décadas
mais adiante: estamos em 2037 e existem vários
blocos económicos que se enfrentam não só
pelo comércio como pelas armas.
Na América, e noutros países desenvolvidos,
a clonagem não se faz: foi banida. Nestas nações
usam-se as máquinas e a inteligência artificial.
Mas os cientistas que se interessavam pela clonagem migraram
em massa para França, onde a clonagem, longe de
ser proibida, foi incentivada pelo Estado.
Assim, a França especializou-se na indústria
dos clones - criados retirando uma célula a um
embrião, para depois os fazer crescer em incubadoras
capazes de sustê-los durante os nove meses de desenvolvimento.
Esses clones são submetidos a algumas pequenas
alterações genéticas, de forma a
terem malformações na glote e no cérebro
que os impedem de falar e desenvolver uma linguagem -
o que, espera-se, faz deles animais sem consciência,
criados em grandes quintas, como se fossem gado.
Muitos destes clones são cópias genéticas
de pessoas ricas, que os usam como uma espécie
de seguro de vida: quando precisarem de um transplante,
ou até de uma perna ou braço novos, retiram-no
ao seu clone. Se precisarem de um órgão
fundamental, sem o qual o clone não pode sobreviver,
este é abatido e todos os seus órgãos
e tecidos são congelados. Desta forma, as componentes
anatómicas humanas (vulgo peças sobressalentes)
estão sempre prontas a usar quando o seu dono delas
necessitar.
Outros clones são usados como cobaias em experiências
científicas - uma opção vista com
bons olhos pelos amigos dos animais, como uma velha actriz
reformada cujas iniciais são B.B., como a bem real
Brigitte Bardot - ou então como as bestas de carga
que estão na base de toda a actividade económica.
Tudo isto acontece com o beneplácito do Vaticano
- que no Concílio de Francoforte, em 2000, define
o que considera humano e deixa de fora os clones, porque
são criaturas feitas pelo homem e não por
Deus.
Hoje, tudo isto parece ao mesmo tempo actual e deslocado.
Por um lado, fala-se da clonagem e dos limites necessários
para que os seres humanos não se transformem em
coisas, para que os embriões humanos sirvam de
salvação para os já nascidos ou de
formas de salvar essas vidas nascentes, mesmo quando não
são mais que uma série de células
trabalhando em conjunto. A posição oficial
dos Estados Unidos é mesmo favorável à
interdição na clonagem, e a Europa oscila
entre o desejo de ganhar a vanguarda e as hesitações
no plano ético.
Mas, por outro lado, os desenvolvimentos da ciência
nesta década e meia não nos conduziram assim
tanto por essa via da coisificação. Os cientistas
aprenderam a clonar mamíferos adultos, sim, e estão
à beira de aprender a fazê-lo com seres humanos.
Mas nem de perto nem de longe existem úteros artificiais,
meios de permitir que um embrião se desenvolva
sem ser na barriga de uma mãe.
E embora os cientistas falem em coisas que parecem assustadoras
- como criar embriões com o património genético
idêntico ao de alguém, e destruí-los
passado uns dias, para colher células estaminais
-, não se fala na criação de quintas
de clones. Nem em considerar que os clones não
seriam humanos.
Fala-se em aprender a controlar o desenvolvimento dessas
células estaminais, que dão origem a todo
o tipo de células e tecidos do corpo, para criar
formas de tratar doenças hoje incuráveis.
Talvez enxertos de células cerebrais para os doentes
de Alzheimer ou Parkinson - ou até mesmo a criação
de órgãos inteiros em laboratório,
como um coração ou um fígado novos,
cujas células teriam o património genético
do doente e, desta forma, não apresentariam problemas
de rejeição, em caso de transplante.
Isto é menos assustador do que o cenário
negro traçado por Truong? Pode-se dizer que sim,
mas também se pode dizer que estamos a falar da
mesma coisa, embora com roupagens mais alegres. O próprio
Truong o diz, numa entrevista disponível a partir
da consulta do seu "site", em http://www.jean-michel-truong.com :
"Está em curso um debate sobre a possibilidade
de criar órgãos 'in vitro', como pele ou
corações. Mas penso que nunca chegaremos
lá, porque o desenvolvimento dos órgãos
é controlado por sinais do seu ambiente químico,
que encaminham o processo, mas também pelo ambiente
volumétrico: um coração desenvolve-se
daquela forma porque está situado entre os dois
pulmões, e todos dentro da caixa torácica."
Não é o argumento de um biólogo,
é o de um especialista em inteligência artificial
e filosofia, mas é taxativo: "Na minha opinião,
nunca será possível criar órgãos
em laboratório." A única maneira de
fazê-lo, sublinha Truong, é dentro de corpos
em tudo semelhantes aos humanos, embora possam ser manipulados
para não ter cérebro.
As ideias de Truong - que ele desenvolveu noutros romances
e ensaios - inserem-se numa das grandes correntes de pensamento:
em traços largos, a dos que têm medo das
consequências das inovações que a
ciência e a medicina trazem. Nos Estados Unidos,
esta corrente está, neste momento, fortemente ligada
ao poder: Leon Kass, o presidente do comité de
bioética que aconselha o Presidente George W. Bush,
é bem conhecido por este tipo de posições
(ver http://www.bioethics.gov ), e o igualmente bem conhecido
Francis Fukuyama, que também faz parte deste comité,
defendeu estas preocupações em 2002, no
livro "O Nosso Futuro Pós-Humano" (Quetzal).
Mas também há quem veja com entusiasmo as
possibilidades para a humanidade da evolução
das técnicas de manipulação biológica.
Gregory Stock, da Universidade da Califórnia em
Los Angeles, é um bom exemplo, sobretudo através
do livro "Redesigning Humans" (Profile Books),
que foi editado em 2002 e é normalmente discutido
em oposição com o de Fukuyama.
Entre a visão negra do futuro humano e as projecções
mais cor-de-rosa deverá situar-se a realidade.
Mas, na falta de respostas certas, o melhor mesmo é
ouvir as opiniões de ambos os lados. Se for possível
fazê-lo no conforto das malhas de um romance como
este, tanto melhor.
© Publico, Sábado,
20 de Março de 2004
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